Dia Internacional Contra o Uso de Crianças Soldado

Hoje celebra-se o Dia Internacional Contra o Uso de Crianças Soldado, também conhecido como Red Hand Day – um dia que serve para refletir sobre o uso abusivo e calculado de crianças em conflitos armados, adicionando, camadas interseccionais de vulnerabilidades e cuja resolução deve ser uma das principais prioridades dos Estados. Foi neste dia que, em 2002, o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança Relativo à Participação de Crianças em Conflitos Armados entrou em vigor. Este Protocolo estabelece obrigações para os Estados garantirem que membros das suas forças armadas com menos de 18 anos não participem diretamente nas hostilidades. Estabelece ainda que a idade mínima para recrutamento voluntário nas forças armadas deve ser aumentada para 15 anos e ressalta que crianças com menos de 18 anos têm direito a proteção especial, exigindo salvaguardas adequadas para qualquer recrutamento voluntário abaixo dessa idade. Proíbe também o recrutamento coercivo de menores de 18 anos e exige que os Estados tomem medidas legais para impedir que grupos armados independentes recrutem e usem crianças em conflitos.

Crianças Soldado – Definição e estatísticas globais

A UNICEF define “criança-soldado” como qualquer pessoa com menos de 18 anos que é parte de qualquer tipo força armada regular ou irregular ou grupo armado qualquer que seja a função que exerce, incluindo, mas não se limitando a, cozinheiros, mensageiros e qualquer pessoa que acompanhe tais grupos, incluindo raparigas recrutadas com objetivos sexuais ou para casamentos forçados.

A mesma organização registrou que entre 2005 e 2022, mais de 105.000 crianças foram recrutadas e usadas por partes em conflito, embora acredite-se que o número real de casos seja muito maior. Estima-se que existam mais de 300 000 crianças soldado a combater em mais de duas dezenas de países. O último relatório “Crianças e Conflito Armado”, elaborado pela Representante Especial do Secretário-Geral da ONU para a questão afirma que só em 2022 existiam 7.622 casos verificados de crianças recrutadas e utilizadas em conflitos armados em 23 países. Mais de 12.460 crianças anteriormente associadas às forças armadas ou grupos receberam proteção ou apoio à reintegração durante o ano de 2022.

Esse mesmo relatório identificou nove forças armadas estatais que continuaram a recrutar crianças para conflitos armados, nomeadamente a República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Mali, Somália, Sudão do Sul, Síria, Iémen, Afeganistão e Myanmar. Além disso, grupos armados também continuam a recrutar crianças nesses mesmos países a par do Estado, assim como na Colômbia, Sudão, Palestina e Líbano.

O uso de crianças como participantes ativas em conflitos armados – apesar de prática antiga –  começou a ser cada vez mais instrumentalizado após o período da Guerra Fria. A criança passou a ser vista como uma potencial ferramenta de ataque ao invés de uma vítima completamente passiva. Alguns autores como P.W. Singer afirmam mesmo que este período inaugurou uma nova doutrina de guerra causada por vários fatores como as mudanças sociais provocadas pela globalização, conflitos armados e doenças, gerando um novo conjunto de pessoas vulneráveis ao recrutamento. Também o avanço tecnológico na fabricação de armas resulta na produção de equipamentos mais leves e compactos, o que facilita o seu uso por crianças. No campo de batalha, as crianças podem ser corajosas e resistentes, especialmente quando sob a influência de drogas, uma prática comum, ou quando impulsionadas por crenças políticas ou religiosas. Unidades infantis podem causar grande surpresa, retardando o progresso das forças inimigas.

Apesar de não serem consideradas atores internacionais no contexto geral do sistema internacional, as crianças são seres em desenvolvimento, fáceis de manipular, sem um papel social ainda definido e sem responsabilidade penal, sendo este também um factor atrativo para o seu recrutamento.

Por outro lado, as causas para que uma criança se torne criança soldado dependem muito do contexto regional e dos diversos atores do conflito que através de diversas formas como o rapto, a propaganda, pressões económicas (fugir da pobreza, pagar dívidas) ou sociais – recrutam crianças para os conflitos armados. A este respeito destaca-se o uso da propaganda como uma das ferramentas de recrutamento mais eficazes, já que cria uma dinâmica de “reconhecimento ideológico” na criança, fazendo com que a mesma acredite na importância da sua intervenção. Instituições educacionais, madrassas e eventos públicos e religiosos funcionam como pontos de entrada para comunicar a ideologia do grupo e identificar potenciais recrutas. O estabelecimento de ligações próximas com combatentes armados também pode levar ao recrutamento de crianças, especialmente em ambientes de conflito, onde as mesmas procuram proteção através de relacionamentos ou são encorajadas pelos parceiros combatentes a juntarem-se às forças armadas ou grupos armados. Na Colômbia, por exemplo, 10% das raparigas foram recrutadas pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) através das suas relações com combatentes. O envolvimento de membros da família em grupos armados também tem um impacto significativo nas crianças, que podem assumir papéis de apoio aos pais e irmãos envolvidos no grupo.

Sublinha-se que o recrutamento de crianças pode ser forçado ou pode parecer “voluntário” sobretudo se for usada a propaganda. Esta distinção pode ter uma implicação legal, dependendo dos tratados dos quais um Estado é signatário. Embora possa parecer haver um elemento de “escolha” envolvido nas ações de uma criança que resultam na adesão a um grupo armado, essa escolha é quase sempre um produto de coerção, falta de alternativas seguras e do medo criado pelo próprio conflito.,

Child Soldier

Crianças soldado – uma perspetiva de género

Aqui também importa alertar para a questão de género como mais uma interseccionalidade da problemática das crianças soldado e especialmente preocupante para as meninas que – para além de realizarem as mesmas tarefas que os rapazes – são frequentemente vítimas de violência sexual, sendo forçadas a serem as “esposas” ou escravas sexuais dos combatentes. Uma das formas mais comuns de recrutamento é precisamente o casamento infantil sob a ameaça de divulgação de vídeos ou imagens explícitas que comprometem a reputação da jovem ou da sua família. Por exemplo, na Síria, a força policial feminina Hisbah do Estado Islâmico tinha como função localizar jovens para casamentos forçados com combatentes estrangeiros, sob a ameaça de violação, sequestro ou desonra.

A idade emerge como um fator determinante na exploração sexual, variando entre grupos, com alguns recrutando meninas mais jovens, enquanto outros preferem aquelas com mais de 15 anos. Muitas são infectadas pelo HIV ou outras doenças sexualmente transmissíveis e algumas, infelizmente, acabam por engravidar. Em muitos casos, são estigmatizadas e vivem com os filhos em condições extremas, sofrendo com a falta de alimentos e água potável e sem acesso a cuidados de saúde.

Mas o papel das meninas nos conflitos armados não é apenas indireto ou passivo – em contextos africanos, 37% das raparigas recrutadas por grupos armados participaram diretamente nos combates. Alguns destes grupos possuem brigadas exclusivamente femininas, como a Unidade de Proteção das Mulheres Curdas (YPJ) no Nordeste da Síria, sendo treinadas para usar armas de todos os tipos. Na Nigéria e na região do Lago Chade, grupos armados usaram raparigas raptadas como bombistas, representando 75% dos ataques suicidas na Nigéria entre 2014 e 2016.

Os desafios da reintegração das crianças soldado na comunidade

O seu sofrimento não termina quando retornam para casa. As crianças-soldado que sobrevivem a conflitos armados frequentemente têm de lidar com deficiências físicas, pobreza, perda ou rejeição de familiares e amigos. Acabam por desenvolver também doenças psiquiátricas, baixo nível de literacia, comportamentos agressivos, ansiedade e depressão, tendências suicidas e ao isolamento social assim como oposição a regras e tradições da comunidade. As poucas oportunidades de encontrar emprego ou de voltar à escola fazem com que o crime ou a prostituição sejam frequentemente vistos como as alternativas. É, portanto, crucial, a existência de mecanismos e programas que protejam e tenham em consideração todas as particularidades e camadas de complexidade que estas crianças carregam no regresso.

“O que mais os ajuda é restabelecer a vida normal”, refere Rayan Fattouch, coordenadora de Saúde Mental da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Yambio (Sudão do Sul). Segundo dados da Unicef, 85% das ex-crianças soldado do Sudão do Sul têm sequelas, 15% apresentam consequências patológicas e 5% têm sérios problemas psiquiátricos.

A reabilitação de uma criança soldado é realizada através de programas de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (DDR), cujo objetivo é contribuir para a segurança e estabilidade das crianças, reintegrando-as na sociedade e procurando aceitação e reconciliação com as suas famílias e a comunidade local. O DDR também tem como objetivo ensinar à criança o sofrimento causado pelas suas ações e, em algumas situações, encoraja-se o envolvimento voluntário em trabalhos comunitários, especialmente com aqueles que sofreram mais as consequências do conflito.

Fontes:

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